sexta-feira, 26 de abril de 2013

Três vezes preconceito



Todos nós, em maior ou menor escala, somos contaminados por algum tipo de preconceito. Livrar-se dele exige um exercício diário e uma atenção permanente com julgamentos apressados. Pois se engana quem acha que não tem preconceito algum.

Para provar, dia desses me peguei no pulo. Assistia a um debate sobre cinema com críticos convidados e participação da plateia. Perto do fim, um sujeito pegou o microfone e na primeira frase soltou um “pograma”. Agucei o ouvido na dúvida de ter escutado direito e, em última instância, atribuí o deslize ao nervosismo do sujeito em fazer uma pergunta em público.

Mas não. No decorrer de sua fala, “pograma”, “pogramação” e “pogramador” se repetiram algumas vezes. No alto da minha sobriedade, não me lancei ao deboche como muitos fariam, pensando em alto e bom som: que burrrro, dá zero pra ele. Não. Mas senti uma irresistível vergonha alheia, um sentimento de pena instantânea que na sua gênese desqualificava o cidadão pela sua fala fora do padrão.

O fato é que no meu autoengano de não me achar preconceituoso – apenas por não debochar – estava exercendo outro preconceito, o de desqualificar alguém pela vergonha que sentia em vê-lo “falar errado”.

A lição não demorou a vir. Veio a cavalo e me deu um coice. Isso porque, a despeito da fala, o cidadão conhecia mais sobre o assunto que se debatia naquele instante do que todos por ali, público e debatedores. Mais que isso, apresentou um panorama, a partir de sua experiência, que desconstruiu todo o debate, trazendo à dura realidade o que até então planava no campo das vãs filosofias. Uma aula, praticamente.

O episódio me chicoteou forte. Logo eu, muitas vezes vítima de certos preconceitos de intelecto e capacidade. Um recalque, aliás, que carrego e que se reflete até no nome deste espaço.

Outro episódio mais amplo de preconceitos se revelou durante esta semana. Foi o anúncio de que o ex-presidente Lula ganharia uma coluna no jornal The New York Times. O anúncio, não tardou, fez chover piadas baseadas na conhecida pouca escolaridade do ex-mandatário da República Brasil.

Particularmente, não tenho mais grande apreço pela figura nem por seu partido. Ambos, ao longo dos últimos anos, pisotearam os valores que me fizeram ser um aguerrido defensor deles na juventude. Isso, contudo, em nada diminui minha admiração pelo sujeito que chegou onde chegou. Como tampouco me faz duvidar que ele tenha, sim, muito a dizer de relevante nas páginas do grande jornal.

Já os risinhos e as piadas (de desafetos legítimos a surfistas de ocasião), revelaram o preconceito sórdido que ainda impregna nossa sociedade. Quando não vêm disfarçados de piedade, como o que descrevi antes, vêm na pele de piadas infames.

O que me lembrou de um episódio curioso vivido por um amigo. Era um desses coquetéis de lançamento de livro. Apesar de humilde e sem grande instrução formal, esse amigo é um leitor dedicado e, sobretudo, apaixonado pela literatura. Meio deslocado, avistou dois rapazes, que conhecia “de vista e de chapéu”. Sorriram-lhe, talvez por reconhecê-lo de outras bandas literárias. Por educação, ele se aproximou para cumprimentá-los.

Depois de algumas amenidades, por trás de óculos de armação enorme, um deles perguntou o que meu amigo andava a ler. “O Estrangeiro, de Albert Camus”, respondeu ele. Percebeu, então, que ambos não conseguiram disfarçar um riso contido, que ficou entre o deboche e o constrangimento por não poder evitá-lo tão à face do outro.

Desculparam-se sem graça, mas não se furtaram a corrigi-lo em tom infantilizado, como os adultos costumam se dirigir às crianças: “Se diz ‘Albér Camí’”. Explicaram que o autor era argelino e, portanto, francófono. Daí a pronúncia, reforçada por eles em bico de francês postiço e seguramente mal pronunciada, em contraste com a pronúncia aportuguesada que meu amigo usara.

Sentindo-se um pouco envergonhado e sem saber o que dizer, preferiu seguir falando do autor e perguntou o que já tinham lido dele. Entreolharam-se, e sem muito constrangimento admitiram que nunca leram “Camí”, apenas tiveram algumas aulas de literatura no colégio de renome que estudaram.

Meu amigo, que nunca estudara em colégio de renome, já tinha lido todos os livros do escritor. Duas vezes. Mas aos olhos da sociedade isso só valia alguma coisa se ele soubesse pronunciar o nome Camus com aquela impostação artificial e colonizadora, de quem mais se preocupa em parecer do que ser.
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sexta-feira, 12 de abril de 2013

Maioridade Penal




Responda com sinceridade. Quais as chances do debate sobre a redução da maioridade penal estar em evidência hoje caso o jovem baleado por um menor de idade, durante um assalto e diante de câmeras de segurança, não tivesse morrido? Arrisco a dizer: zero. Está aí a primeira coisa a se ponderar no momento.

Hoje, basta um caso mais dramático chamar atenção e repercutir para que se levantem bandeiras apressadas. Pode ser a maioridade penal, a pena de morte, a legalização do aborto, a descriminalização da maconha ou qualquer outra polêmica adormecida que, subitamente, de uma hora para outra, parece se tornar urgente.

No caso específico da barbárie de um latrocínio praticado por um menor, a voz que assoma à garganta de muitos, pedindo pela redução da maioridade penal, é menos um grito de justiça e mais um grito de justiçamento. Não são vozes em busca de uma melhora da segurança pública, mas em busca de uma execução que aplaque seu doído sentimento de impunidade. Justo e compreensível, mas nem um pouco racional. E é a irracionalidade da turba feroz que o Estado tem o dever de barrar.

Primeiro, porque quem grita pela punição mais severa de menores de 18 anos dificilmente tem conhecimento sobre números da criminalidade. Menos ainda saberiam citar algum estudo sério que comprove que a redução da maioridade contribui para a redução da criminalidade.

Segundo, porque ficam todos sem resposta diante da questão inerente ao problema de uma redução, digamos, para 16 anos. Como ficará se, no futuro, um jovem de 15 anos cometer outro crime bárbaro? A grita será por nova redução? E qual seria o limite dessa redução?

O que não se percebe, por mais óbvio que seja (ou deveria ser), é que existe uma diferença entre um debate ponderado sobre questões como essa e um levante popular influenciado por um crime que chocou a todos. Mais assombroso ainda é não se perceber que o desejo não é de uma solução estrutural, mas de uma punição pontual. O tipo de punição capaz de aplacar momentaneamente o sentimento de injustiça, mas pouco importando se o problema da criminalidade está sendo resolvido com aquilo.

Não se percebe ainda que toda grita deveria estar direcionada para outro aspecto, exigindo melhora nos mecanismos já existentes em nossa legislação. Políticas de amparo ao jovem de classe baixa, políticas mais eficazes de segurança pública, aplicação correta do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), criação séria de programas assistenciais de infraestrutura para reabilitação e reinserção de menores infratores.

O que precisamos aprender é que pouco se resolve quando a cada novo fato novas leis são exigidas. Bem ou mal, nossas leis e mecanismos sociais já estão escritos e atendem com razoável amplitude os problemas de nossa sociedade. Mas enquanto forem apenas letra morta em papel empoeirado nada vai melhorar. A luta não é para se encher mais páginas com novas letras natimortas de leis elaboradas no calor da indignação enraizada na desinformação. Mas de fazer aquelas já escritas serem cumpridas exemplarmente.
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