Todos nós, em maior ou menor escala, somos contaminados por
algum tipo de preconceito. Livrar-se dele exige um exercício diário e uma
atenção permanente com julgamentos apressados. Pois se engana quem acha que não
tem preconceito algum.
Para provar, dia desses me peguei no pulo. Assistia a um
debate sobre cinema com críticos convidados e participação da plateia. Perto do
fim, um sujeito pegou o microfone e na primeira frase soltou um “pograma”. Agucei
o ouvido na dúvida de ter escutado direito e, em última instância, atribuí o
deslize ao nervosismo do sujeito em fazer uma pergunta em público.
Mas não. No decorrer de sua fala, “pograma”, “pogramação” e “pogramador”
se repetiram algumas vezes. No alto da minha sobriedade, não me lancei ao
deboche como muitos fariam, pensando em alto e bom som: que burrrro, dá zero
pra ele. Não. Mas senti uma irresistível vergonha alheia, um sentimento de pena
instantânea que na sua gênese desqualificava o cidadão pela sua fala fora do
padrão.
O fato é que no meu autoengano de não me achar preconceituoso
– apenas por não debochar – estava exercendo outro preconceito, o de
desqualificar alguém pela vergonha que sentia em vê-lo “falar errado”.
A lição não demorou a vir. Veio a cavalo e me deu um coice.
Isso porque, a despeito da fala, o cidadão conhecia mais sobre o assunto que se
debatia naquele instante do que todos por ali, público e debatedores. Mais que
isso, apresentou um panorama, a partir de sua experiência, que desconstruiu
todo o debate, trazendo à dura realidade o que até então planava no campo das
vãs filosofias. Uma aula, praticamente.
O episódio me chicoteou forte. Logo eu, muitas vezes vítima
de certos preconceitos de intelecto e capacidade. Um recalque, aliás, que carrego
e que se reflete até no nome deste espaço.
Outro episódio mais amplo de preconceitos se revelou durante
esta semana. Foi o anúncio de que o ex-presidente Lula ganharia uma coluna no
jornal The New York Times. O anúncio, não tardou, fez chover piadas baseadas na
conhecida pouca escolaridade do ex-mandatário da República Brasil.
Particularmente, não tenho mais grande apreço pela figura
nem por seu partido. Ambos, ao longo dos últimos anos, pisotearam os valores
que me fizeram ser um aguerrido defensor deles na juventude. Isso, contudo, em
nada diminui minha admiração pelo sujeito que chegou onde chegou. Como tampouco
me faz duvidar que ele tenha, sim, muito a dizer de relevante nas páginas do
grande jornal.
Já os risinhos e as piadas (de desafetos legítimos a surfistas
de ocasião), revelaram o preconceito sórdido que ainda impregna nossa
sociedade. Quando não vêm disfarçados de piedade, como o que descrevi antes,
vêm na pele de piadas infames.
O que me lembrou de um episódio curioso vivido por um amigo.
Era um desses coquetéis de lançamento de livro. Apesar de humilde e sem grande
instrução formal, esse amigo é um leitor dedicado e, sobretudo, apaixonado pela
literatura. Meio deslocado, avistou dois rapazes, que conhecia “de vista e de chapéu”.
Sorriram-lhe, talvez por reconhecê-lo de outras bandas literárias. Por educação,
ele se aproximou para cumprimentá-los.
Depois de algumas amenidades, por trás de óculos de armação
enorme, um deles perguntou o que meu amigo andava a ler. “O Estrangeiro, de
Albert Camus”, respondeu ele. Percebeu, então, que ambos não conseguiram
disfarçar um riso contido, que ficou entre o deboche e o constrangimento por
não poder evitá-lo tão à face do outro.
Desculparam-se sem graça, mas não se furtaram a corrigi-lo
em tom infantilizado, como os adultos costumam se dirigir às crianças: “Se diz ‘Albér
Camí’”. Explicaram que o autor era argelino e, portanto, francófono. Daí a
pronúncia, reforçada por eles em bico de francês postiço e seguramente mal
pronunciada, em contraste com a pronúncia aportuguesada que meu amigo usara.
Sentindo-se um pouco envergonhado e sem saber o que dizer,
preferiu seguir falando do autor e perguntou o que já tinham lido dele. Entreolharam-se,
e sem muito constrangimento admitiram que nunca leram “Camí”, apenas tiveram
algumas aulas de literatura no colégio de renome que estudaram.
Meu amigo, que nunca estudara em colégio de renome, já tinha
lido todos os livros do escritor. Duas vezes. Mas aos olhos da sociedade isso
só valia alguma coisa se ele soubesse pronunciar o nome Camus com aquela
impostação artificial e colonizadora, de quem mais se preocupa em parecer do
que ser.
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