Se ainda não é algo que possa ser chamado de fenômeno, tende
a se tornar em breve. Ao menos as instituições estão seguindo a receita de
junho passado para que se torne.
Até o último final de semana, os chamados
"rolezinhos" vinham acontecendo com razoável grau de previsibilidade:
algum desconforto para os shoppings e seus clientes mais habituais e só. Até
que a PM usou de sua típica delicadeza para dispersar um grupo no shopping
Itaquera.
Agressão gratuita, bala de borracha, gás, enfim, o kit
completo do despreparo. E olha que desta vez nem precisou de editorial clamando
para que se retomassem os shoppings dando um basta à toda aquela bandalha. Sem
falar nas liminares concedidas pela Justiça, ainda bastante mal explicadas.
Pois é desse encadeamento de equívocos, como foram
equivocados os editoriais e a resposta da polícia em junho passado, que pode
vir a formalização de fenômeno desses rolezinhos. Pode vir daí, dos típicos
equívocos das elites, repetidos por falta de memória ou por burrice pura e
simples, o crescimento e a expansão desse fenômeno.
Mas diferente das jornadas de junho, que começaram
capitaneadas por um grupo, o Movimento Passe Livre, e uma bandeira, a redução
da tarifa de ônibus e metro recém reajustada, os rolezinhos surgem de forma
quase espontânea, querendo apenas zoar, paquerar, dar uns beijos, olhar umas
vitrines. Em suma: ver e ser visto. Nada diferente do que quer (ou quis)
qualquer jovem, de qualquer classe social.
Pois sua legitimidade nasce e pode se chamar fenômeno
justamente pela falta de bandeira e de liderança. O que, aliás, é o que vem
dando um nó na cabeça de analistas, sociólogos, jornalistas e sabidos em geral
desde o ano passado. Não há bandeira, não há exigência, não há diretoria,
assembleia, nada disso. Só o desejo de estar, conclamado por rede social, sem
nenhum propósito aparente que não seja “causar”, que na linguagem dessa geração
quer dizer aparecer e provocar.
Contudo, é desse despropósito aparente que deveria vir a
observação mais aguda do fenômeno. Se deixarmos a preguiça, a simplificação e o
preconceito de lado, veremos que na entrelinha do gesto há uma causa, uma
revindicação não formulada e não articulada. Talvez porque eles mesmos não
saibam articulá-la, como quem sente que algo está errado, mas não sabe dizer o
quê, seja por falta de recursos retóricos ou de compreensão do todo.
Mas como uma sociedade é um tipo de organismo vivo, a doença
incubada em algum momento apresenta seus sintomas. Mas esses sintomas nem
sempre são claros. Daí a necessidade de interesse e atenção para entender o que
está acontecendo de fato, em vez de receitar uma aspirina, feita de liminar e
bala de borracha.
Mas entre os sintomas, o mais revelador é sobre nossa
sociedade. Mais deprimente do que uma sociedade em que as insatisfações de
classe precisem se mostrar mediadas pelo consumo e seus símbolos de status, é a
forma como esta sociedade está lidando com isso.
Não quer saber de ouvir, entender, observar e identificar o
que há por trás dele, nem que aspetos e sintomas ele traz. Manda logo uma liminar,
manda revistar, proibir, restringir, expulsar. É como se da periferia, de
pessoas que ouvem funk, que vestem aquelas roupas, que têm aquele vocabulário e
aquela cor de pele, não pudesse vir outra coisa que não fosse coisa ruim.
Como dizem os americanos: da última vez que fui checar, isso
ainda se chamava preconceito.
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