quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Caso Kaique - Não era o que parecia. Mas, por que parecia tanto?


Não há como mentir. Também foi meu primeiro impulso espernear contra aquela conclusão da polícia, que parecia apressada, sumária. Certamente, parte desse impulso veio na esteira do que explodiu nas redes sociais. Somos todos influenciáveis e manter a ponderação em casos assim nem sempre é simples. Mas há outro aspecto que o caso e seus desdobramentos revelam. O caso a que me refiro é o do jovem Kaique.

Para quem não lembra, 12 dias atrás, Kaique, de 16 anos, foi encontrado morto sob o viaduto Nove de Julho, no centro de São Paulo. As primeiras descrições do estado em que foi encontrado ganharam ressonância a partir de declarações da família, segundo a qual o jovem estava desfigurado, dentes arrancados, sinais de chutes no rosto, uma barra de ferro trespassada na perna. Kaique era negro e homossexual.

Em poucas horas, a polícia registrou o caso como suicídio, seguindo esta linha nas investigações. Daí explodiu nas redes sociais, e até em uma manifestação no centro de São Paulo, a indignação contra o crime terrível de homofobia e discriminação racial de que Kaique teria sido vítima e a tentativa da polícia em minimizar o caso através da conclusão de suicídio.

Depois de toda repercussão, passados alguns dias, a conclusão parece irrefutável, com a própria família afirmando que foi, de fato, suicídio. Com exceção dos paranoicos conspiratórios de sempre, que vão dizer que a família foi forçada pela polícia, como ficam aqueles que esbravejaram apressadamente? De minha parte, que nem cheguei a esbravejar, mas me senti tentado a ir na onda, fica o pedido de desculpas formais, apenas por ter cogitado me apressar junto à turba.

Mas é neste acúmulo de erros que o caso de Kaique deve ser tomado como um ponto para reflexão a respeito de nossa sociedade, a relação dela com as instituições e a questão do preconceito no país. Pode-se tirar, no balanço final do caso, analisar alguns aspectos a partir das reações. Lamentando sempre e profundamente, claro, que para tais observações mais um jovem tenha perdido a vida e mais uma família esteja a sofrer a perda irreparável.

A primeira coisa a se notar neste caso é o descrédito de nossas instituições, como a polícia, por exemplo. Este descrédito não é pontual, mas quase consensual. Da falta de recursos, passando pelo descaso até chegar na pura incompetência, esta é a imagem que a instituição passa. Promover a reabilitação da confiança na polícia é algo necessário e urgente para que diminua na população a sensação de insegurança e desconfiança. Dois males que entranhados em grande parte da sociedade, que teme quase que indistintamente criminosos e policiais, desconfiando de ambos.

Mas para isso não basta atentar para a “imagem”, mas também para ações de limpeza interna, profissionalização, capacitação e preparo dos policiais. Afinal, eles também são vítimas de um descrédito em cascata: a população não confia neles, eles não confiam nos governos dos quais recebem ordens e o ciclo vai passando de elo em elo até arrebentar sempre no mais frágil: a população.

Outro aspecto, tão urgente e importante quanto o descrédito da polícia, é o problema da homofobia e da transfobia no Brasil. Este é mais complexo, tem raízes em setores da sociedade, na falta de informação e até em preceitos religiosos.

A rápida associação da morte de Kaique com crime de homofobia revela e tortamente se justifica pelo estado das coisas. A gravidade do problema serve mesmo de atenuante para as equivocadas e apressadas conclusões sobre a morte do rapaz, surgidas antes mesmo de provas ou indícios consistentes. O quadro é grave, muito mais do que parece.

Segundo matéria no jornal El País (leia aqui), “em 2012 foram registrados 338 assassinatos motivados por homofobia ou transfobia, 27% a mais que em 2011. Neste ano, recém estreado, já foram contabilizados 25 casos com gays, transexuais ou travestis como vítimas. O Brasil, desde 2008, concentra quase a metade do total de homicídios de transexuais, de acordo com o relatório da organização europeia Transgender Europe”.

Sendo assim, diante dos fatos, não é necessariamente absurdo - ainda que seja pouco justificável - que se conclua apressadamente sobre crime de homofobia diante de um quadro tão aterrador e que mostra o tamanho do problema aqui no Brasil.

Mais efetivo do que números e estatísticas pouco divulgadas, foram os ainda recentes casos de agressões covardes (com perdão da redundância) a homossexuais em São Paulo e que ganharam ressonância na mídia. Ainda frescos na memória, os casos serviram para chamar atenção sobre o problema da homofobia, que entrou na roda das discussões por algumas semanas.

Algo precisa ser feito para combater de forma eficaz esse preconceito pautado pela ignorância, mas sabemos que qualquer avanço legal neste sentido esbarra nas bancadas evangélicas, cujos líderes não se acanham em exibir, disseminar e incentivar “criminosamente” o preconceito e a discriminação contra minorias sexuais.

O criminosamente, aqui, fica entre aspas, justamente porque ainda faltam leis para isso, que de fato criminalizem a homofobia e a transfobia. Faltam estas leis justamente porque sua aprovação esbarra nestas bancadas das trevas, que insistem em manter apagada qualquer luz que ilumine avanços da humanidade e do humanismo.

Por fim, o último ponto está nas redes sociais, como bem lembrou o jornalista Alan Gripp na edição de hoje da Folha de S.Paulo (leia aqui). Mas pode-se ir além e lembrar dos aproveitadores de plantão. Blogueiros, colunistas e jornalistas apequenados por conclusões apressadas e opiniões agressivas que atentaram contra o básico da profissão jornalística: checar e ouvir.

Assim como a população em geral, não estes são imunes aos efeitos desviantes dos dois pontos anteriores: o descrédito da polícia e a crescente violência homofóbica. No entanto, os atenuantes anteriores cabem menos aos profissionais da imprensa, cuja responsabilidade é muito maior naquilo que dizem e publicam, seja num grande veículo, seja num blog ou na sua página do facebook.

Muitos desses se apressaram não apenas em concluir sem sustentação, mas também em surfar na polêmica, ganhar cliques, likes, compartilhamentos, ter seu nome e seu texto circulando.

A indignação é sempre justa, mas a acusação deve ser cautelosa. Exemplos na história da imprensa de injustiças cometidas por conclusões apressadas não faltam. Mesmo assim, parece que nunca aprendemos a lição.

No que diz respeito à homofobia violenta de nossa sociedade e sobre a escassa lisura e honestidade das investigações policiais estão todos certos em desconfiar, suspeitar e investigar. Mas concluir baseado apenas na primeira impressão é pedir para ficar manchado por equívoco grosseiro. É, reforce-se, equívoco grosseiro.

De positivo, fica a lição. Pena, no entanto, que não seja a primeira. Nem deverá ser a última.

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