O que pode ter em comum uma secretária de escola privada,
uma gestora de recursos humanos, um professor, um taxista, um jornalista, uma
fisioterapeuta, uma diretora de curso de idiomas, um pastor evangélico formado
em teologia e um policial militar? Resposta: todos são vagabundos, maloqueiros,
vândalos e arruaceiros.
Mas há outra coisa em comum entre eles: uma rua chamada São
Sepé. Era lá, no início dos anos 1990, onde muitas vezes nos encontrávamos. Uma
rua no Jardim Brasil, bairro da periferia da zona norte de São Paulo. O motivo
de ali ser um ponto de encontro é mais um exemplo da fronteira muito tênue
entre vagabundos e pessoas de bem.
Sam e Meg: pessoas de bem |
A descrição é difícil. Na rua São Sepé havia um longo muro.
No meio do muro, na calçada estreita, havia um poste e neste poste havia um
cabo de aço preso, que corria ao longo do muro até o outro poste. A altura
deste cabo de aço e sua distância do muro, rente ao primeiro poste, permitia
simular ali uma cesta de basquete, esporte pelo qual todos os vândalos citados
acima eram fãs praticantes na juventude. Ali passávamos horas jogando e,
inevitavelmente, incomodando o morador em frente ao poste, que era gente de
bem.
Jovens que queriam apenas se divertir, passar algum tempo
junto, praticar um esporte que gostavam. Mas ali, na periferia, em vez de
praça, parque e quadra, havia um poste, um muro e um cabo de aço. E éramos
felizes por tê-lo. Fora disso, seria o de sempre: o tédio.
Claro que incomodávamos o Sam e a Meg, apelido que demos
para o casal que morava em frente ao poste e que vivia reclamando do barulho. A
bola de basquete quicando no asfalto, a gritaria de quem jogava e de quem
assistia, os cabeludos palavrões gritados uns contras os outros. Devia mesmo
ser um inferno, admito, ainda mais agora que me tornei uma pessoa de bem.
Certamente Sam e Meg nos olhavam de trás das grades da
janela da sala que ficava atrás das grades do portão da casa e se perguntavam
(já duvidando) que futuro teriam aqueles vândalos boca-sujas e aquelas meninas
que andavam com maloqueiros. Certamente nenhum.
Rolê de busão
Vagabundo tentando uma enterrada |
A formação era variada. Na época não existia ainda telefone
celular nem mp3. Mas nem por isso aqueles mesmos vagabundos arruaceiros
deixavam de incomodar os passageiros do ônibus. Aglomerados no fundo, viajando
mais de duas horas para chegar ao parque do Ibirapuera, cantavam músicas dos
Racionais MC’s. As preferias eram “Fim de Semana no Parque” e “O Homem na
Estrada”.
O que será que as pessoas de bem daquela época pensavam de
nós? Pensavam que um dia até poderíamos nos tornar também pessoas de bem? Ou
desejavam apenas que a polícia chegasse e nos fizesse calar a boca, nos
ensinasse com cassetetes e tapas na cara a respeitar as pessoas decentes que
queriam viajar em paz? Certamente, alguns até pensavam que devíamos ser
proibidos de entrar nos ônibus.
Agora crescemos, nos tornamos pessoas de bem, e quando vemos
um jovem da periferia com seu celular tocando funk em alto volume dentro do
ônibus pensamos o mesmo. Que não tem futuro, que é um vagabundo sem educação,
que deveria ser posto para fora do ônibus, marginal analfabeto e ignorante que
é.
Estereotipar e acusar é mais fácil do que tentar entender. Mas
a linha que separa vagabundos e pessoas de bem é mais fina do que parece.
Talvez, na verdade, nem exista.
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